Prezado Carnaúba
Muito oportuno este seu registro sobre uma das grandes tragédias provocadas pelas "águas" na nossa cidade do Recife, há exatos 66 anos. Há, entretanto, uma grande diferença daquela tragédia em relação a esta que nos atingiu agora, nos últimos dias. Lá, em 1966, o problema ocorreu devido a uma grande enchente do rio Capibaribe, provocada por chuvas no interior (Região Agreste e Zona da Mata Norte), conforme você citou. Naquela ocasião, as chuvas no Recife foram moderadas, sem causarem maiores problemas. A enchente do Rio, ao contrário, cobriu várias partes do Recife, incluindo até bairros nobres e provocou grande destruição, inclusive porque as águas ficaram altas por vários dias.
Eu, pessoalmente, cheguei a ser considerado por familiares como "desaparecido", porque fiquei três dias ilhado no Bairro do Cordeiro, próximo à Av. Caxangá, sem qualquer chance de comunicação com ninguém. O meu "fusquinha" foi totalmente coberto pelas águas, pois a Av. Caxangá parecia mais um "grande afluente do Capibaribe". Felizmente havia conseguido abrigo com alguns conhecidos em um apto. no primeiro andar de um bom edifício daquele bairro, onde ficamos até às águas baixarem.
Vale a pena recordar que depois daquela cheia as autoridades "competentes" (?) criaram uma Comissão para estudar o problema das recorrentes cheias que atingiam o Recife. A Comissão foi liderada pelo nosso Saudoso Professor da Escola de Engenharia, Gerson Teixeira da Costa, por sinal um alagoano, registro, comprovado especialista no assunto. Em resumo, recordo que a Comissão definiu que para controlar as referidas enchentes seria necessária a construção de três barragens na bacia do Capibaribe. A principal, no leito do próprio Capibaribe, denominada Barragem de Carpina, e mais duas outras em afluentes. Uma no Rio Tapacurá, próxima à Cidade de Vitória de Santo Antão, e outra no Rio Goitá, na área da Mata Norte.
Muito bem, cadê o dinheiro? Construiu-se apenas a Barragem de Tapacurá, inclusive porque o seu reservatório ia ser aproveitado também para fazer o abastecimento d'água do Recife, que já andava muito deficitário.
RESULTADO: Chegou 1975 e o Recife enfrentou a maior cheia do Capibaribe de que se teve notícia. Tapacurá sozinha não resolveu e até tornou-se caso de uma outra "quase" tragédia quando, logo após a enchente, surgiu a notícia falsa de que a Barragem de Tapacurá se havia rompido e o volume d'água liberado abruptamente iria destruir o Recife. A loucura que atingiu quase toda população da Cidade foi indescritível. É um "fato" que ficou na história da Cidade.
Depois dessa enchente de 1975 o Governo Federal então viabilizou o dinheiro e as Barragens de Carpina e Goitá foram construídas rapidamente. Desde então desapareceram as enchentes que periodicamente assolavam o Recife. Nunca mais aconteceu. Particularmente, em 2010, quando houve um período de muitas chuvas em quase todo o Estado de PE, inclusive provocando muita destruição na área da Mata Sul (Barreiros, Catende, Palmares, entre outras cidades), foram observadas grandes afluências às três barragens acima citadas, as quais se encheram completamente e controlaram a liberação da água conforme projetos, evitando assim que mais uma enchente do Capibaribe viesse a atingir o Recife, que passou incólume.
Já a tragédia atual, nada tem a ver com enchentes do Capibaribe ou de qualquer outro rio, mas sim do alto índice de chuvas que caiu na região metropolitana do Recife, seguidamente durante vários dias, provocando destruição na maior parte dos casos por deslizamento de barreiras que em geral vão atingir residências de pessoas mais humildes, populações mais carentes, que por falta de políticas governamentais adequadas acabam construindo "moradias" precárias em locais em condições de alto risco. Me parece ser esta a razão principal do grande número de pessoas que perderam a vida agora e em outros casos como esse que vez por outra nos atinge, bem como a varias outras cidades do nosso País.
Acho que já falei demais. Porem, se você achar conveniente, pode passar este meu registro para todo o grupo, a guisa de recordação, pois no meu computador não consigo transmitir para muitos ao mesmo tempo.
Abraço
Feijó
Quando Carnauba mandou e-mail direto pra mim do aniversário da cheia de 1966 , veio tudo na minha memória e eu o respondi na hora. Agora com o relato fundamentado de Feijó repito para voces , que quase todos viveram a mesma situação.
"Oi Carnaúba, não esqueço essa enchente: eu fiquei a noite toda em cima de uma árvore. As ruas no entorno de minha casa na Madalena se tornaram afluentes do Capibaribe.Pensando ser problema localizado,acompanhei meu irmão saindo pelo fundo do quintal e passando pelo vizinho para pedir socorro dos Bombeiros. Lá em casa estavam minha tia idosa e outras pessoas.Encontramos com Agenor (estudante de Medicina) que vinha em sentido contrário. Ele dizendo ser bom nadador teve muita dificuldade em atravessar a rua. Como eu disse que não sabia nadar ele me mandou subir na árvore , enquanto meu irmão ia procurar os Bombeiros. Este quase não chegou no outro lado,tanto pela correnteza e por ter levado um choque elétrico. Voltou dizendo que a situação era geral e não encontrou bombeiros. O lembrei de procurar apoio na casa de Ageleu.Passei a noite toda na árvore dentro da casa de Ximenes , onde já tinha 2 pessoas. Muitos passavam nadando e paravam na árvore.Fatos tragicômicos ocorreram.Só sai ao amanhecer resgatado por Ageleu e agarrado num tronco puxado por corda. Fui acolhido na casa dele.A rua continuava um rio.Tinha ganho há 3 meses do meu pai um Gordini Teimoso , que tinha deixado numa rua mais alta que a minha. Ficou coberto pela enchente. "
O Messianismo é uma dinâmica social resultado da crença de um grupo de indivíduos em um libertador enviado por Deus para redimir seu povo. Canudos, na Bahia, em 1896, foi um movimento messiânico, vez que Antônio Conselheiro era considerado um enviado de Deus para salvar o povo nordestino. A Guerra do Contestado, de 1912 a 1916, também teve caráter messiânico: na fronteira entre Santa Catarina e o Paraná o pregador católico, “Monge” José Maria, liderou uma luta em defesa de trabalhadores sem-terra atacados por tropas do governo federal, acenando com novos tempos de paz e justiça.
Campina Grande também teve qualquer coisa parecida. Pouco lembrada, a seita “Borboletas Azuis”, criada pelo místico Roldão Mangueira de Figueiredo, em 1961, foi um movimento messiânico surgido nessa cidade.
Próspero comerciante, nascido em 1905 em Conceição do Piancó, também na Paraíba, ele atuava em Campina Grande, desde 1930, nos ramos de algodão, agave e mamona, até que um incêndio destruiu seus armazéns. Contava ele que, desolado, havia decidido se suicidar, mas que havia mudado de ideia quando São Francisco de Assis lhe apareceu, ordenando que ele se dedicasse à caridade. Passou a realizar em sua casa sessões chamadas Mesas Brancas.
Misturando catolicismo tradicional, espiritismo e protestantismo, o movimento prometia aos pobres uma alternativa para as dificuldades do dia-a-dia. Adquirindo fama de milagreiro, Roldão atraiu uma legião de fiéis que passaram a frequentar a igreja que construiu no bairro do Quarenta, a Casa de Caridade Jesus no Horto. Os “Borboletas Azuis”, vestiam-se de branco e azul. Proibidos de praticar atos considerados mundanos, andavam sempre descalços, “para ter mais contato com a Terra” e eram instruídos pelo místico para evitar cores berrantes, esportes e a medicina. Muitos adeptos desfizeram-se de seus bens para praticar a caridade exigida pelo líder. Em entrevista à época ao Diário da Borborema, Antônio da Silva Maciel, relatou que “era motorista de praça” e que vendera seu carro para entrar na seita. Os adeptos confiavam que estava para chegar o dia em que seria instalado no mundo o reino da paz e da justiça.
Mas Roldão Mangueira havia previsto e alertado seus seguidores que, antes desse advento, um dilúvio se daria no dia 13 de maio de 1980, “para matar todos os pecadores e dar início a um novo tempo”. Disse ele em entrevista publicada no Diário de Pernambuco: “uma enorme bola de fogo cruzará o céu, o Sol girará por três vezes consecutivas, um grande trovão ecoará por toda a Serra da Borborema. Em seguida choverá sem parar por 120 dias”.
Havia quem temesse que a irmandade terminasse em uma tragédia semelhante ao suicídio coletivo provocado pelo pastor norte-americano Jim Jones, em 1979. O mesmo Diário de Pernambuco publicou em 11 de maio de 1980: “A cidade vive dias de expectativas. Nesta semana cresceu a hostilidade da população contra os Borboletas Azuis. As autoridades temem que haja um linchamento dos integrantes da seita...” e, nessa mesma edição, “como medida de precaução, adotada pelas autoridades policiais de Campina Grande, para ser posta em execução no dia do dilúvio, destaca-se o esquema especial de segurança armado pela Terceira Região da Polícia.” Nessa ocasião, Roldão estava sumido, com a imprensa de Campina especulando se ele estaria internado numa clínica psiquiátrica de João Pessoa.
Na data anunciada pelo criador da seita, não houve nem suicídio coletivo, muito menos dilúvio. O dia 13 de maio de 1980 em Campina foi de sol, contrariando a expectativa dos “Borboletas Azuis”. Tendo gorado sua previsão, Roldão Mangueira não viveu por muito mais tempo. Em meio a um jejum a que se obrigara, como forma de penitência, o guia dos “Borboletas Azuis” morreu um mês depois da data do fim do mundo que anunciara.
O Diário de Pernambuco, de 19 de maio de 1980, publicou o cordel de Aldemar Paiva:
O DILÚVIO
O Pastor Roldão Mangueira
gritava na pregação
que na terça-feira 13
ia haver inundação
que acabaria com o mundo
pecaminoso e imundo
do litoral ao sertão.
Causou muita apreensão
a maldita profecia
deixando Campina Grande
na mais completa agonia.
A Casa da Caridade
era o ponto da cidade
pra onde o povo correria.
O dilúvio que viria
na terra só respeitava
a SEITA DOS BORBOLETAS
que prevenida já estava
com jangada e alimentos
boias e medicamentos
que o próprio Roldão juntava
Porém o sol brilhava
na terça-feira todinha
anunciava ao povão
que o dilúvio não vinha.
Já tinha nego equipado
com o barco pronto ancorado
na saída da cozinha.
Vendo a cidade sequinha
e que tudo era besteira
o Roldão adoeceu
e se enrolou numa esteira...
Com a bexiga doente
água morna, fria ou quente
Não teve nem na “mangueira”.
Fernando Ribeiro de Gusmão em 6-6-2022