No 1 de abril de 1964, amanheci em Escada, Mata Sul de PE. Na véspera à tardinha, fora a Escada, num coletivo superlotado, em pé. Dera 4 aulas à noite até às 22h00, no Colégio N. S. da Escada no qual lecionava. Como sempre, jantei no educandário, e dormi na casa provida pelo colégio. Escada era então, um ativo foco camponês de luta por condições mais dignas de trabalho, remuneração e vida. Fato hoje com o trabalho quase escravo do atual cortador de cana, ainda em vexatório estado de débito civilizatório. Às 5h00 da madrugada, sem tomar café, embarquei de volta num ônibus para o Recife. Desde 62, era essa a minha rotina, 3 vezes na semana.
De Escada ao Recife, de nada sabendo do a vir, já bem cedinho e em diferentes pontos do trajeto, notei movimentação anormal de veículos e tropas militares. A cada nova visão dos cenários, indagação por quê? Era já face o foco camponês canavieiro na Mata Sul, a atuação militar e civil repr essora associada, sistemicamente desfechada.O golpe já nasceu com longas ramificações e garras de MG até os canaviais.
Cheguei à Escola de Engenharia de PE (EEP), na Rua do Hospício, onde cursava o terceiro ano de engenharia mecânica, pelas 7h30 da manhã. Tomei café no bandejão do Diretório Acadêmico (DA) e ainda imaginava ir a seguir, assistir aulas. Tanto pelas tropas que eu vira, como pelo engajamento político pessoal, caiu rápido a ficha da dura e nova realidade: ‘nada de aulas por vários dias’. A senti mais cedo e bem mais, que outros. Nas primeiras notícias, a razão das tropas que eu vira clareou de vez.
Diziam informes contraditórios gerando dúvidas: parte das forças armadas, ajudada por civis cúmplices, iniciara golpe militar na noite anterior em MG, que estava em pleno curso. Uma facção militar golpista entre MG e RJ (depois rotulados de broncos [vacas fardadas?] e logo postos para trás por outros ainda mais oportunistas), desfechara ação armada, na madrugada. Mas forças legalistas resistiam! O golpe em diversos pontos do país, evoluía livre! ou talvez não? alguns se iludiam? Era mesmo fato ou não? Era o golpe, um fato! A democracia em vigor, muito precária como até hoje, começava ali, a padecer. Anos terríveis de chumbo iniciavam e muito durariam.
A EEP, pelo seu papel de então, como uma vanguarda universitária por reformas de base e afins, naquela manhã se tornou na militância acadêmico política do Recife, ponto de especial convergência de várias facções engajadas. Número expressivo de estudantes da EEP, outros acadêmicos ou não; professores; pessoas diversas, com intenções distintas concentram-se nela; mil informes desencontrados. Nas intenções distintas moravam perigos a ver. Horas depois dramaticamente os perigos se consumariam. A cada hora face os vários informes de realidades conflitantes, a EEP tornava-se mais elétrica. Ora informes afirmavam avanços do golpe; ora invertendo os sentimentos, afirmavam seu controle por tropas legalistas. Uma dança: de ‘doce’ realidade para os da direita e dura para os da esquerda. Cada um, no íntimo, confundia ou não, desejos seus com os fatos reais.
Da nossa militância aliada, dos muitos que fomos, cito alfabeticamente 15 colegas de turma ou contemporâneos, como exemplo. Salvo falha estávamos lá: Aécio Matos, Airton Araújo, Bruno Maranhão, Cândido Pinto, Cristovam Buarque, Drumond Xavier, Ednaldo Miranda, Geraldo Kleber, Joel Teodósio, José C. Melo, Renato Ribeiro, Ronaldo G. Dantas, Ruy Frazão, Sérgio Buarque, Telmo Araújo. Na EEP da época, sob a liderança do do DA corriqueiramente discutíamos candentes temas de presumido interesse público, em assembleias, seminários e tudccoisas do gênero.
Debatíamos aperfeiçoamentos dos nossos cursos e do ensino em geral, apoio às reformas nacionais de base, agrária etc., e tudo mais afim. Idealistas, no frescor ingênuo (?) dos nossos algo como 22 anos em média, queríamos mudar o mundo para melhor como alguns ainda buscam hoje. Éramos esportistas, víamos os melhores filmes, namorávamos garotas. Na época, nada ainda mais visível sobre ecologia e desenvolvimento sustentável. Naquele dia, tudo mudou brusca e estupidamente. Nenhum de nós tinha capacidade de processar em tempo real o que nascia e após cruamente se revelou prolongado.
Nas incertezas e indefinições do que surgia, prosperou a ideia de fazermos uma reunião em assembleia no salão nobre da EEP. Foi para face o golpe em curso, debater o que se fazer. Tanto as lideranças mais destacadas como os liderados, desejávamos quase todos decifrar a esfinge. No início da tarde, passamos a debater e o como agir. Surgiam proposições ao acaso, nem sempre sensatas, ou perspicazes. Exemplo: alguém pediu ao nosso então professor de Cálculo II, Antônio Brotas - português refugiado da ditadura salazarista, postado lá no fundo do salão, na assembleia – que se juntasse aos líderes, na ‘mesa’. E, salvo engano, pouco depois, que também ele se pronunciasse sobre o acontecimento em curso. Fatos eu creio, que sem intenção de causarem males a ele, foram muito infelizes: em nada contribuiu a participação ostensiva do professor Brotas na ‘mesa’ e ele se ferrou. Ele sofreu dramáticas consequências segundo se viu. Dos fatos vistos e por ter mais tarde, humanamente, tentado socorrer um dos estudantes mortos, na passeata sucedendo a assembleia.
Consta, que só pela participação honrosa, digna, corajosa, do professor Jônio Lemos, maiores agruras, com muitas dificuldades livrando-o de Salazar, foram contornadas. Pelo que eu vira na madrugada daquele dia, na volta de Escada para o Recife, e pelo envolvimento com a realidade da EEP, minha percepção pessoal, face outros colegas, teve intensidade diferenciada. Eu tinha com o ambiente da EEP e seu local, ligações super conectadas ao lugar e ao que prosperou no 1 de abril. Eram ligações bem além das normais de outros colegas apenas estudantes, funcionários, professores, etc. É que eu vivia todo tempo ‘praticamente socado’ no ambiente EEP. Assistia aulas todo dia pela manhã e à tarde na EEP; morava na Casa do Estudante de Engenharia (CEE), bem perto dela, na Rua do Riachuelo; nos dias úteis fazia refeições no bandejão da EEP; domingos e feridos, o café era no bar do ‘seu Pinho’ ou do ‘Biu e Calado’ na esquina da Riachuelo com a Praça 13 de Maio.
Eu dirigia os esportes do DA, que dispunha de uma bandeira do Brasil, normalmente exibida em competições esportivas. Bandeira que naquele 1 de abril, teve que eu saiba, seu último papel. Onde estará? Se alguém souber que me diga! Eu representava a minha turma de classe de engenharia mecânica; era ainda dirigente da CEE na rua do Riachuelo, onde residia.
Na assembleia naquele 1 de abril, aí pelas 13h, quando diante do quadro ainda obscuro do golpe, nos perguntávamos o que fazer, alguém ‘muito bem informado’, que nós estudantes e os mais militantes políticos da EEP - mesmo os mais calejados, desconhecíamos quem fosse – anunciou que o governador Miguel Arraes estava no palácio das Princesas, cercado por tropas do IV Exército. E aí ele sugeriu o que fazer face o fato: irmos em passeata ‘libertá-lo’! ??? Sem pensar, quase todos, caímos na esparrela da ‘sugestão’ do gajo. Quase todos, porque recordo que um não: o colega Bruno Maranhão desconfiou. Lembro-me de Bruno perguntando-me com veemência algo como: quem é esse cara Padilha? De onde vem essa sugestão? Não adiantou a sadia e sagaz cautela de Bruno. A sugestão do provocador (ele o era com certeza), pesou mais! Que eu me lembre, todos aderimos à ‘sugestão’ do gajo, talvez também Bruno.
Daí para frente, os fatos foram se sucedendo como uma cachoeira, até às sabidas 2 mortes na Dantas Barreto. Saímos em passeata. O ilusório sonho vão: ‘no trajeto arregimentaríamos muitos populares’ e juntos, certamente libertaríamos o governador! Arregimentamos poucas pessoas, talvez apenas alguns gatos pingados. Planejamos seguir pela Rua do Hospício até a da Imperatriz, daí irmos pela rua Nova e dobrarmos à esquerda na Dantas Barreto para chegarmos ao palácio do governo e ‘libertarmos o Dr Arraes!’
Segundo Cristovam Buarque, o trajeto mudou, e foi pela Guararapes. Acho que não. Cristovam está enganado segundo confirmaram outros. Ainda na EEP e na assembleia, alguém sugeriu levarmos uma bandeira do Brasil, na passeata. Aderi com entusiasmo a tal proposta. Como diretor de esportes do DA, lembrei que eu tinha sob minha guarda, uma bandeira do Brasil e cuidei de levá-la. Peguei-a com ajuda do funcionário da EEP, que tinha a chave do armário de vidro de sua guarda no DA. Ele assim ficou sabendo do fato ‘bandeira na passeata’.
Uma foto do Diário da Noite, já exibiu-a na mesma noite. Tornei-me por tanto, refém potencial do funcionário (passei meses e anos com receio de ser dedado; nunca fui; não o apertaram, negou ou não se ligou ao fato). Casal de amigos, não lembro quem, argumentando discrição no fato, levou-a envolvida num blusão. Na Dantas Barreto, após cruzar ou vir pela Guararapes, na altura da loja Remillet Calçados, vimos a tropa do Exército. Estava estacionada a uns 200 m. Bloqueava a Dantas Barreto, próximo ao Teatro Santa Izabel no cerco ao palácio. À medida que avançávamos na direção do palácio, a tropa começou a vir ao nosso encontro. De repente a marcha da tropa passou a ser em ‘passo de ganso’ (como não prestei serviço militar, eu não sabia: tal marcha convencionalmente [como herança prussiana, depois eu soube], precedia disparos). Instigados pelos participantes mais próximos, achamos naquela hora, oportuno como um ‘escudo cidadão patriótico’, desfraldar a bandeira do Brasil. Já que estávamos todos desarmados, as tropas por certo haveriam de respeitá-la!... Ilusão total quanto à bandeira brasileira ser escudo cívico social nacional: choveram balas matando os estudantes: Jonas na hora, e logo depois o outro Ivan.
Foram as primeiras vítimas fatais do golpe de 64 no Brasil. Merecem no mínimo pelo fato, ser lembrados e referenciados. Eu não os conhecia; nas fotos dos jornais (Diário da Noite de 1 de abril?), identifiquei minhas mãos sustentando a bandeira, mas não o meu rosto meio que por trás dela. As balas ricocheteando no calçamento, como que levantavam respingos de uma chuva bem grossa; alguém sem qualquer base, levianamente gritou: são tiros de festim; foi grito imprudente e retardou assim, debandada talvez salvadora;Não eram balas de festim e a debandada por isto prosseguiu; abrigado por um carro Citroën preto estacionado, eu tentava em vão convencer Geraldo Gomes, presidente (?) do DA de Arquitetura, a também se abrigar; pois protestando de corpo aberto no meio da rua Dantas Barreto, se expunha facilmente às balas que não eram de festim! Inesperadamente, breve pausa no tiroteio e corrida minha e de muitos, até a orla da Praça do Diário; nova saraivada de balas e todos se jogando ao chão; um soldado da polícia deitado no meio fio, sacando seu revolver, se protegia e tentava me proteger; nova pausa e de novo corrida minha e de muitos, rumo à igreja Rosário dos Pretos (?).
Em seguida, percebi alguém, cambaleando e com um forte jorro de sangue na perna direita na entrada da rua Larga do Rosário. Corri a seu encontro. Enlacei seu braço direito sobre meu pescoço e retomamos num afastamento capenga rumo à igreja.Mais tiros e turba aflita se juntando e correndo nos empurrando no então apertado da rua, no mesmo rumo à igreja.
Pelo que lembro, à altura do então restaurante Aviz (?), eu e o muito ferido, tentamos entrar nele nos abaixando sob a sua porta de ferro de enrolar, que com muita força e de forma veloz fechando-o, era abaixada pelos garçons. Manobra infeliz a minha. Foi impossível vencer a força de vários baixando a porta, forçando-a entre eu e o socorrido, contra apenas a minha fraca força pessoal, buscando elevá-la, para também o ferido poder entrar. A partir daí, pela impossibilidade de não poder impedir o abaixar da porta de ferro de enrolar, separamo-nos para sempre: eu dele e do fato dramático; Ele talvez da própria vida.
Até recentemente eu pensava que o ferido era Ivan, que se disse na época, ter tido a femoral da perna direita perfurada. Se era ele e o fato é certo, imagino sem certeza, que não o salvei por pura ignorância pessoal à época. Devia como suponho hoje, tê-lo deitado no lugar onde cambaleava, erguido a sua perna e aplicado um garrote (?). Não pude confirmar até hoje se era Ivan. Tenho esperanças, vir a sabê-lo um dia.
Segundo só ultimamente eu soube e sem certeza, houve um baleado numa perna, que pode ter sido um outro: ouvi dizer que seria Ubirajara Silva (?). Como a porta do Aviz (?) foi fechada à chave, ficamos eu, e quem mais estava dentro dele, isolados por um bom tempo. Chocado, e num claro delírio pessoal, subi numa cadeira e pus-me a discursar no recinto contra o golpe. Perplexos quase todos os clientes almoçando, observavam sem nada entenderem, a cena patética que promovi. Exceto um cliente. Esse, dirigiu-se cortesmente a mim, buscando me acalmar. Disse ser paulista. Diplomado advogado no ano anterior, pela USP; ser ex militante do grêmio XI de Agosto; falou que conhecia nossa luta política e era solidário com ela, mas achava que eu estava me expondo inutilmente; os comensais nas mesas viviam outra realidade. Convidou-me a sentar à sua mesa e tomar uma cerveja preta. Desci da cadeira e aceitei. Vendo a perna da minha calça e sapato esquerdos, ensopados de sangue, ele julgou temerário eu sair assim na rua, claramente me expondo. Por estar hospedado no hotel Nassau em frente ao Aviz (?), ter mais ou menos a minha estatura, ofereceu-me a em seu apartamento, ceder-me uma calça limpa, um banho, aparelho de barbear e a chance de lavagem do sapato esquerdo ensanguentado. Concordei. Concluído tudo, dirigi-me grato aos Correios na avenida Guararapes, tomei um ônibus elétrico para casa de uma irmã em Casa Amarela, evitando naquele momento voltar para a CEE .
No trajeto, revoltado, cuspi agressivamente num passageiro que no interior do ônibus festejava o golpe. Só 4 dias após, no sentar da poeira, voltei à CEE, dedicando-me a ajudado por um colega, ‘queimar sem fumaça’ os jornais e as publicações nos quartos, temendo que pudessem implicar politicamente os colegas mais militantes da CEE, então evadidos.
Além de tudo o mais, no 1 de abril perdi a chance de ter o advogado da USP como um amigo irmão para toda minha vida. Nem minha irmã que foi devolver a calça solidariamente emprestada por ele, nem eu, cuidamos como deveríamos, de anotar seu nome e o seu endereço. Torço para que, se ele estiver vivo e vier a ler este depoimento, um dia venha a me contatar: zearturpadilha@uol.com.br. (81-96012075).