Pecados da universidade
Cristovam Buarque
Senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), 14/0
Cortar verbas para universidade é como interromper transfusão de sangue para o país. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) é talvez o maior exemplo dessa tragédia. Mas as federais também vêm perdendo recursos desde 2015. Entretanto, seria um grave erro limitar a responsabilidade dessa crise apenas a Dilma e Temer. A universidade precisa entender que, há décadas, seus próprios pecados estão preparando o terreno para a crise atual do ensino superior brasileiro.
Basta lembrar que a universidade brasileira gasta anualmente, por aluno, mais do que outras boas instituições de ensino superior internacionais: US$ 13,5 mil. Já Portugal gasta US$ 11 mil; Espanha, US$ 12,1 mil; os ricos países da OCDE, com algumas das melhores do mundo, US$ 15,8 mil.
A universidade precisa saber reconhecer seu grave pecado de não ter alertado e denunciado o perigo da irresponsabilidade fiscal que estava sendo cometida pelos governos. A UERJ, que paga hoje o preço da falência do governo do Rio de Janeiro, não fez movimentos contra o excesso de gastos, com a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 nem contra a óbvia corrupção que drenava recursos do estado.
Ter ficado alheia à péssima qualidade da educação de base e complacente com o descuido dos governos em relação aos ensinos fundamental e médio é um pecado imperdoável da universidade. Sem bons alunos não há boa universidade, mas ela não se manifesta, não se envolve politicamente em defesa da educação de base, nem cuida de formar os professores para essa fase do ensino
A universidade vem cometendo o erro de se conformar em ser uma escada social para seus alunos sem se preocupar em ser uma alavanca para o progresso do país e da humanidade. Concentrada em ser escada por meio de diploma, sem compromisso com a qualidade, ficou presa ao pecado da isonomia, desprezando o reconhecimento do mérito diferenciado de seus professores e alunos.
Ao longo das décadas de democracia, a universidade vem cometendo o também o grave pecado do corporativismo. Passou a achar que os direitos de sua comunidade são superiores às suas responsabilidades com a comunidade nacional. Defende suas reivindicações sem um pacto de conduta com a sociedade que a financia. Comete assim outro grave pecado: o do isolamento, confundido com autonomia, e se recusa a participar como auxiliar do setor produtivo da economia.
Ignorando o pacto de conduta, passou a abusar de greves a tal ponto que a atual paralisação da UERJ, por falta de recursos, é vista como se fosse apenas mais uma greve determinada por sua comunidade, e não como a falência por falta de pagamento dos salários a seus professores e servidores por parte do governo.
A universidade vem cometendo o pecado de não refletir e se manifestar sobre o fato de que gratuidade não é grátis, esquecendo que os recursos que recebe são retirados de alguma outra prioridade. Confunde ser público – servir ao público – com ser estatal – pertencer ao Estado. Quando não vê suas universidades entre as melhores do mundo, o povo se sente no direito de perguntar por que tirar dinheiro dos aposentados, dos pobres, da saúde, da infraestrutura, para colocar em suas universidades.
Não entender que o processo de geração e transmissão de conhecimento se internalizou tem sido um dos maiores pecados da universidade, que comete o erro de não se avaliar nem se comparar internacionalmente. A universidade não tinha o direito de cometer o pecado de ignorar o esgotamento que se anuncia há décadas: fiscal, ecológico, econômico, e de não antever a crise que vai se agravar ao longo dos próximos anos e décadas. Preferiu acreditar que bastariam greves para conseguir os recursos que reivindicavam. Não percebe que agora terá de disputar recursos públicos com a educação de base, com a saúde, com as Forças Armadas, com a infraestrutura, com os subsídios à indústria. Terá de se opor a privilégios a parlamentares e juízes e se opor à corrupção, mesmo por políticos de seu partido.
Para isso, não pode cometer o pecado de não buscar mais eficiência nos seus gastos e encontrar novas fontes de recursos. Muitas universidades do mundo são financiadas por suas pesquisas e patentes e por serviços que prestam. Não buscar eficiência e fontes alternativas é uma das provas do pecado da arrogância aristocrática das universidades estatais brasileiras, que exigem recursos do povo sem se preocupar em mostrar o serviço que presta ao país. Nossos governos, por irresponsabilidade na gestão de seus gastos e suas receitas, por populismo, eleitoralismo e corrupção, são os grandes culpados pela asfixia de nossas universidades e do futuro do Brasil. Mas as universidades também são culpadas por seus próprios pecados de isolamento, desprezo à qualidade e aristocratismo antipopular.