Em 1966, Quico Ramalho, já concluinte, veio morar conosco. Esse conosco significava eu, meu irmão Abrahão e Fred Barbosa ambos concluintes do curso de Geologia.
Morávamos num apartamento de quarto e sala, no edifício Walfrido Antunes na esquina da rua Riachuelo com Gervásio Pires, portanto no mesmo quarteirão das Escolas de Geologia e Engenharia.
O edifício era reduto da estudantada de classe média. Quem estava à perigo financeiramente ia para a Casa do Estudante de Engenharia, ali perto na rua Riachuelo, quem tinha um pouco de condições, com pai bancando tudo, ia para um apartamento com outros colegas para dividir as despesas. No Walfrido Antunes, tinha os apartamentos ocupados pela origem dos estudantes. Tinha o apartamento dos cearenses, cheias de engenheiros 68 e 69, dos alagoanos como nós, eu, Abrahão e Fred (só de alagoanos tinha três apartamentos) e o dos interioranos, os sertanejos normalmente de Belém de São Francisco a maioria estudantes de Direito e Medicina, que tinham um viés político, deu um prefeito, um deputado estadual e um desaparecido político em 1968.
Pois bem, Abrahão era amigo de infância de Quico Ramalho em Maceió, estudaram na mesma classe no Colégio Diocesano, dos irmãos Maristas e se identificaram também pela índole de farristas. Nas férias em Maceió conjuntamente com Guilherme Palmeira, depois Governador de Alagoas, amanheciam os domingos na Avenida da Paz, principal praia de Maceió, na época, tomando as últimas garrafas de rum e conversando com a língua enrolada.
Contra minha vontade, Abrahão insistiu em Quico vir morar conosco. Afinal era o último ano do curso deles, “Quico é meu amigo-irmão, porra“ dizia Abrahão. Eu respondia “Abrahão, o apartamento é pequeno, o quarto é para dormir, (havia dois beliches) e a sala é para estudo, e eu não quero aqui farra, nem bebedeira". Eu, no apartamento assumia o papel de organizador, arrecadava o dinheiro no fim do mês para as despesas, pagava o condomínio e o aluguel, e controlava a lavadeira que as quintas feiras levava uma trouxa com as roupas sujas e trazia as roupas limpas e passadas. Eu impunha ainda a ordem interna, de limpeza e bom comportamento, nada de bebidas nem de som alto. Os vizinhos estudantes me achavam um chato, outros apartamentos havia muitas bagunças principalmente no dos sertanejos e de outros alagoanos, criando problemas com o síndico.
Houve acordo e Quico foi morar conosco. A princípio ele se enquadrou nas ordens internas, mas um belo dia, um belo dia....
Bem, nos finais de cada mês, recebíamos a visita de papai, que era dentista em Maceió e vinha ver os filhos, conversar um pouco comigo e Abrahão, saber de nossas evoluções e trazer um doce de côco que mamãe mandava e a mesada de Abrahão. Eu já era independe financeiramente, já trabalhava e tinha uma bolsa da SUDENE, portanto não precisava de mesada, Abrahão não, era “full time” na Escola de Geologia.
Um belo dia, um belo dia..., Papai chegou num sábado à tarde, de paletó e gravata, todo de branco como era costume nos senhores da época, apesar de papai ter naquele ano de 1966 apenas 53 anos, mas para mim já era um senhor, ou melhor, um velho senhor. Que diríamos então, se víssemos um homem de 63 ou 64 anos como somos hoje, talvez um senhor velhíssimo.
Nesse belo dia, um sábado, Papai chega, abri a porta e as satisfações usuais. Abraços, risos e as perguntas costumeiras, como vai você etc. Eu estava só, Abrahão e Fred estavam viajando naquelas viagens dos estudantes de Geologia que iam de ônibus para o interior e passavam vários dias.
Sentamos nas cadeiras da sala e ficamos a conversar, era 5 horas da tarde. Eis que ouço o trincar de porta se abrindo e entra nosso companheiro de apartamento Quico Ramalho. Quico chega despenteado, cabelos lisos e suados, andando cambiando, batendo com as pernas nas cadeiras de entrada do apartamento, todo sujo, com a camisa inclusive rasgada, parecendo o Tom Cavalcanti naquele personagem do bêbado. E já diz em voz alta “Doutor Esperidião, como, como, como, vai...? como deixou ma, Maceió?
Papai levantou-se o abraçou, com um certo receio para também não se sujar e dizendo algumas palavras de carinho, passou alguns recados da família de Quico.
Quico não conseguia se sentar, só fazia em pé se balançar. Aí foi que percebi que tinha deixado a porta aberta e quando me dirigi para fechá-la, ele disse “trouxe aí, aí, uns amigos” volta para a porta e gesticula para o corredor “entra, entra”.
Pensem nesta cena, entrou uma mulher, uma puta da rua da Guia, também bêbada, com umas roupas extravagantes avermelhadas e um viado de camiseta, calça arrochada, de cabelo grande com presilhas, com sobrancelhas feitas e de batom.
- “Doutor Esperidião, aqui meus amigos. Minha amiga Creuza” olha que nome “e o Totó, meu amigo do bar do Freitas”. Acho que era um bar lá do Recife Antigo.
Eu, paralisado, e pensando “que é que Papai vai pensar de nosso apartamento, que é um “rendez-vous” como dizíamos na época, puxa vida, isto aqui é um apartamento de estudo, o mais bem comportado do prédio. Mas as evidências desmentiam qualquer explicação.
A conversa não teve seguimento, porque rapidamente induzi Quico a tomar um banho, peguei no guarda-roupa uma camisa limpa dele e forcei a barra, educadamente, para ele e seus amigos voltarem para rua. Não queria de modo nenhum, sair com Papai para passear na rua Nova deixando aqueles mortos-vivos no apartamento, até porque, além de limpeza de que eu era cioso, havia dinheiro guardado no quarda-roupa sem chave.
Quico recomposto, se despede e volta com seus amigos para os bares da vida. E eu, fiquei curtindo meu constrangimento junto a Papai, pelo espetáculo. Mas para surpresa minha, Papai levou numa boa e preferiu responsabilizar o fato, a necessidade da juventude de brincar e se divertir, especialmente nos sábados e domingos, talvez para me reconfortar do meu desapontamento que certamente estava visível no meu rosto.
O tempo passou e reencontrei Quico Ramalho duas vezes após a Escola, primeiramente na década de 70, indo a Salvador de férias. Eu estava no Mercado Modelo tomando uma cachacinha com lambreta, que era moda então, e encontrei-me com Quico. Abraços, satisfação, e brinquei “Quico só poderia encontrar vocês neste balcão de tomar cachaça” rimos, tomamos uma e nos despedimos, Quico trabalhava numa empresa na Bahia.
A segunda vez foi na década de 90, estava também de férias numa praia de Alagoas, a Barra de Santo Antonio. Esse balneário é especial, praia linda, selvagem, cheia de barraquinhas de petiscos e eu saudoso estava me deliciando com uma cervejinha e alguns tira-gosto da terra: Sururu de capote, siri de coral e massumin com farinha, quem é de lá sabe o que é isto (alô, Marcus Carnaúba e José Luzo).
Eis que chega Quico, de roupa diferente, não parecia turista, parecia um morador da terra, e já era. Nos abraçamos e desta vez ele estava com uma mulher bonita, loura, com sotaque carioca. Disse-me que estava morando em Barra de Santo Antônio, comprara uma mercearia e estava casado recentemente, curtindo a vida. Tinha chutado o pau da barraca, se despedido dos empregos como engenheiro de Minas e agora o negócio era curtir mais intensamente a vida, trabalhando de bermuda e perto da praia.
Nas minhas reflexões, Quico sempre curtiu bem a vida. Para mim, Quico sempre foi um cara bacana, amigo e que vivia o presente. Nada de passado ou futuro. Hoje quando leio na Filosofia, Confúcio, vejo que o Quico seguia as lições do velho sábio. Lembrei que nas conversas internas do apartamento enquanto eu falava de estudos, SUDENE, industrialização, Fred falava dos the Beatles, Abrahão das farras e Quico das namoradas.
Bons tempos aqueles, mas nunca me esqueci da cena da Creuza, que no visual de rapariga tinha tudo, até uma estrela vermelha virtual na testa e seu acompanhante Totó que com sua voz afeminada afetada estarreceu também os meus vizinhos do Walfrido Antunes, no corredor e no elevador.
Um abraço a todos vocês engenheiros 66, e em especial Marcelo Ferraz, Marco Juno, João Guilherme, Marcos Lopes, Godoy, Fernando Gusmão, Marcos Serrote que tem me incentivado a tornar essas histórias e outras inéditas num livro. Não sei ainda se o farei de todo modo, obrigado pelo estimulo.
Quanto ao Quico, meu abraço afetuoso e torço para que continue vivendo o presente.
Roldão